A única crítica em arquitetura que interessa à Arquitetura é aquela que simula através de palavras, e permite simular, o ato projetual. As demais só interessam aos críticos (e por gentileza não percam tempo com elas).
Nos parágrafos seguintes procurarei sintetizar os antecedentes, o desenvolvimento, as dificuldades, os resultados e as especulações levantadas durante o Workshop ArchDaily Brasil: Clássicos da Arquitetura Brasileira, em outubro de 2014, para alunos de mestrado e doutorado em Arquitetura da UFRGS. Entre os parágrafos estarão algumas fotografias, tomadas pelo fotógrafo Marcelo Donadussi, da Exposição realizada no hall da FA-UFRGS com os postais e posters realizados.
Para começar, três fatos:
1. A escritura não é parte do âmbito da Arquitetura. Não é fundamento; é contingente e acessório.
2. Se você não sabe projetar (desenhar) e não sabe edificar (construir) você não será capaz de escrever em Arquitetura.
3. Escrever em Arquitetura não é um mero problema de escritura: implica saber o que é a Arquitetura e o que compõe o ofício da Arquitetura.
Por que então escrever em Arquitetura?
Esta foi a pergunta que procurei responder no decorrer do workshop. É uma pergunta difícil de ser respondida com palavras. A desconfiança e descrença iniciais são comuns e entendíveis. Porém ainda não conheço casos de alguém que tenha se debruçado sobre esse modo de se aproximar às obras de arquitetura, que tentarei clarificar a seguir, que não tenha compreendido o porquê de escrever em arquitetura. Portanto, da mesma forma que não se aprende a desenhar ou a construir sem pôr um lápis na mão e começar a riscar ou sem colher e pá para subir uma parede de tijolos e argamassa, também não se aprenderá a descrever sem iniciar uma descrição. E esta pedirá por uma habilidade ainda mais importante: observação. Saber observar é mais importante do que saber escrever em Arquitetura, e o objetivo dessa escritura não é mais que aguçar o poder de observação, e posteriormente, indiretamente, o de projeção. Claro: um retroalimenta o outro. Assim, começando pela descrição, o poder de observação irá aumentando com o tempo, e, paralelamente, o de projeção. Após descrever algumas obras, será mais fácil saber por onde começar, dependendo do caráter de cada obra. Mas se você estiver muito descrente do que digo, faça o seguinte teste: compare os resultados da sua descrição com qualquer escrito sobre essa mesma obra. Algo novo, original ou impensável estará na sua descrição. E talvez você perceba que a maioria dos escritos a respeito de uma obra não falam mais que de generalidades e preconceitos compartilhados.
Os três atos fundamentais que compõe esse modo de se aproximar às obras de Arquitetura são: observação direta, desenho especulativo, e descrição objetiva. A característica fundamental entre eles é sem dúvida a especulação. Não queira saber de antemão o destino e o caminho da sua descrição. E não ache também que será um caminho linear. E não espere por um destino final (normalmente não há destino, apenas caminho). A tríada simultânea observação-desenho-descrição será o guia. Ou em outras palavras: a obra deve guiar. O percurso é normalmente ramificado e interrompido. Dá saltos. Os parágrafos podem que sejam incoerentes entre si. Será absurdo como um quadro cubista.
O primeiro ato, a observação direta, será sempre a primeira cronologicamente. Não há outra possibilidade: é preciso ver para descrever. Entretanto, eu não cheguei a uma técnica específica de observação. Ao contrário disso, prefiro ir por caminhos indiretos que aguçam a observação. Um deles é através de se fazer as perguntas corretas: aquelas que estão aquém das opiniões, comentários e significados. São perguntas simples e objetivas, em geral interrogações sobre as medidas (normalmente começo por aqui), sobre os materiais e métodos construtivos. Portanto, são perguntas feitas com quanto? que? e como? Esqueça dos porquês. É dificílimo lidar com eles. Podem levar facilmente àqueles preconceitos que não estamos interessados. Esqueça também do arquiteto (isso é importantíssimo para uma boa descrição). Ter o arquiteto na cabeça enquanto se observa uma obra pode tender às chamadas "intenções", e isso é um tema para psicólogos, hipnólogos ou médiuns psicógrafos (e com ressalvas).
Comece por se perguntar quanto mede? uma série de elementos e distâncias, até você ser capaz de criar uma esquema geral, uma espécie de geratriz de medidas da obra. Responda a essas perguntas sempre com desenhos esquemáticos e croquis. Pergunte-se de que material é feito tal elemento e como foi construído. À medida que alguns fatos indubitáveis forem aparecendo, vá escrevendo. Não deixe a descrição para o fim. O processo é, e deve ser, simultâneo e retroalimentador. Não se preocupe se o início do texto parecer ruim. Você não precisa mantê-lo para sempre aí, como parágrafo inicial. os parágrafos são flexíveis. Podem ser facilmente embaralhados. Se cada um é um universo, melhor. Escolha o que parece tocar algo fundamental da obra. Ao longo da descrição você talvez perceba que aquele elemento pelo qual você começou a descrição não era lá muito importante. Mas ele terá uma circunstância fundamental: de ter possibilitado a chegada a outro aspecto mais importante.
Por exemplo, na primeira aula do workshop nos enfrentamos à escada do Solar do Unhão, projetada pela Lina Bo Bardi. Fiz a seguinte pergunta: "que madeira é essa?". Se alguém achar que é uma pergunta estúpida, possivelmente terá alguma razão. Eu prefiro chamá-la de pergunta óbvia. Aquele provérbio que diz que a solução pode estar debaixo do próprio nariz, é certeiríssimo. O óbvio é difícil de ver. Portanto, busque as perguntas óbvias (ou se você preferir, estúpidas). Mas não ache que as perguntas óbvias são respondidas facilmente. Numa classe com dez alunos de mestrado e doutorado demoramos vários minutos para ter certeza dessa resposta. E para saber que eram dois tipos de madeira. Por quê? Porque as respostas às perguntas óbvias estão em pouquíssimos ou nenhum livro, mas na própria obra e seu projeto. E é preciso saber ver a obra para poder respondê-las. Para as perguntas "inteligentes", basta ter o último livro de história da arquitetura ou consultar o Wikipedia.
Você precisará ter um software similar ao AutoCAD aberto para poder responder a muitas das perguntas. Os esquemas que você irá desenvolvendo no decorrer das perguntas serão uma espécie de levantamento da obra, um projetar ao revés. Insira as planimetrias no software e meça e remeça suas distâncias. Será uma espécie de redesenho. Porém não um redesenho "por cima", senão um redesenho "ao lado". Por que isso? Para que você interprete e pense sobre as medidas e reconstrua o projeto do zero, como se você fosse o projetista. Não se trata de uma reprodução idêntica da planimetria original. Esse tipo de redesenho mimético não interessa para a observação e entendimento das obras de arquitetura. Será uma espécie de desconstrução e fragmentação do desenho original. Compare sempre as planimetrias com as fotografias. Lembre: seu ofício não é mimético, e sim especulativo. Não confie inteiramente nas planimetrias. Você dificilmente saberá qual a sua procedência. Quem a desenhou? Que função teve de fato? A construção a seguiu à risca?
Sugiro, e sugeri sempre aos alunos do workshop: comecem por um elemento, um detalhe, um setor, algo parcial da obra. Será muito abstrato ao início (e a sua descrença aumentará nesse momento). Mas insista e procure saber exatamente como é aquilo que você está tentando descrever. Saber exatamente quer dizer: saber todas as medidas e suas relações, todos os materiais, suas características, como se ajustam uns aos outros, e como foram construídos. Não tente abarcar a obra em totalidade. Isso provavelmente é impossível. E, por outro lado, é o caminho usual, porém um caminho divergente à obra. Compare alguns escritos sobre alguma obra (ou melhor, não faça isso, ou só faça depois de ter concluído sua descrição). Você perceberá facilmente que talvez as primeiras três páginas (se é um artigo de média extensão) trata de contextos, sejam histórico, urbano, legislativo, trata de uma certa biografia resumida do arquiteto, sintetiza várias supostas intenções projetuais. Mas da obra, somente depois da metade do texto. Muitas vezes é possível reduzir um artigo a um par de parágrafos, ainda que com pouquíssimo interesse. Uma dissertação de mestrado pode ser reduzida a talvez três páginas. Uma tese de doutorado, a umas dez (para ser generoso).
Porém, nada disso, nada desse processo terá seu almejado fim, incrementar a capacidade projetual, se as obras escolhidas para a descrição não forem obras exemplares. E quem dirá que obras são exemplares e quais não são? Poucos são capazes se fazer esse discernimento. Pouquíssimos. O peso da idade é um deles (mas cuidado com os "redescobrimentos" históricos e com os "renegados" que subitamente voltam à tona). O que eu posso dizer sobre isso é que uma obra exemplar de arquitetura resultará em estimulantes descrições; aquelas que produzem descrições pobres não merecem atenção maior do que você já prestou a elas (e infelizmente você já perdeu seu tempo).
A nossa editora de Clássicos da Arquitetura, Audrey Migliani, nos deixa um pouco da sua experiência:
«Depois de seis meses trabalhando diretamente com a produção de textos de/para arquitetos, posso dizer que meu olhar para a arquitetura mudou. Aprendi que para escrever em arquitetura é necessário despir o texto. Ele deve ser claro. Objetivo. Minimalista. O texto deve ter como partido inicial tornar o leitor hábil a desenhar um edifício mesmo sem que ele tenha nenhuma peça gráfica à mão. Aqui, temos uma estrutura, quase que uma política de que o texto deve ser capaz de reconstruir a obra a partir das palavras. Não é fácil, confesso, desvincular a estrutura tradicional. Não é fácil eliminar o “rococó” de nosso vocabulário, mas essa busca é louvável. Penso que se todos nós, quando estudantes, tivéssemos sido expostos a esse tipo de abordagem teríamos mais arquitetos escritores. Acredito que se os arquitetos tivessem essa cultura desde o início de sua formação, se interessariam mais em documentar as obras com palavras, e muitos de nossos clássicos não estariam esquecidos nas prateleiras das bibliotecas.»
Escrever em Arquitetura (e a crítica em Arquitetura) é uma ação supérflua. Se você não tem interesse, não perca seu tempo. Mas alguém duvidará que os grandes arquitetos da história foram grandes escritores?
Por isso, me interessa crer na seguinte hipótese: a escritura amplia a capacidade de Arquitetura.
Na próxima semana, descreverei com mais detalhes as etapas de trabalho e os exercícios desenvolvidos durante o workshop.
* Leia aqui a segunda parte do artigo.
O Workshop ArchDaily Brasil: Clássicos da Arquitetura Brasileira teve como referências fundamentais dois ensaios publicados na nossa seção de artigos:
Os seguintes trabalhos desenvolvidos durante o workshop foram publicados na nossa seção de Clássicos da Arquitetura:
- Clássicos da Arquitetura: Ladeira da Misericórdia / Lina Bo Bardi, e
- Clássicos da Arquitetura: Hospital Regional de Taguatinga / João Filgueiras Lima (Lelé)
Alunos participantes: Camila Dias, Diego Brasil, Jamile Weizenmann, Julian Grub, Luara Mayer, Manoela Py, Mariana Jardim, Rafael Duarte, Roberto Nehme, e Valentina Marques.
Sobre a Exposição: a expografia e montagem estiveram a cargo de Igor Fracalossi, assim como a concepção e diagramação dos postais e posters.